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quarta-feira, 6 de setembro de 2017

O Direito não é Didático e “Juiz não pode se trancar numa torre de marfim”


Manzini (Vincenzo Manzini em “Trattato di Diritto Penale, 1993, Torino, tomo I, página 29) adverte que o Direito Penal é, em verdade:

“uma determinada parte da moral assegurada por uma sanção específica que chamamos pena”.

Esse o ponto de vista que prevalece entre os penalistas que enfrentam mais detidamente o problema e se mostram capazes de remontar aos primeiros princípios. É claro que aqueles que não conseguem passar os limites do tecnicismo jurídico e estagnam no plano da “jurisprudência inferior” não atingem uma visão total do problema.

Os que tentam reduzir o direito penal aos quadros da criminologia, incapazes da delimitação das duas áreas científicas, igualmente não se apercebem das conexões entre o direito penal e a moral. E, finalmente, outros, presos a uma visão estritamente sociológica do problema penal, vêm nesta disciplina jurídica simples decorrência da realidade histórico-política.

Realmente, como observa o penalista Rosal (Juan do Rosal, Política Criminal, Barcelona, 1944, pag. 48) “o direito penal não deixa de ser um conjunto de preceitos em constante renovação”. Sujeito às vicissitudes de cada época, ele:
  • Reflete a índole dos regimes políticos,
  • Recolhe informações de outras ciências,
  • Promove sua própria revisão, evolui, transforma-se.

Aos que a examinam, é este um dos primeiros aspectos que a história das instituições penais oferece. Há, porém, nos estatutos penais, sem embargos das transformações que sofrem, princípios isolados da pura historicidade. E o direito penal, ao mesmo tempo em que espelha a fisionomia peculiar da época em que vige, não se exaure num historicismo que desconhece o destino ético da pessoa humana.

A mobilidade da história não suprime as leis naturais do homem. O direito positivo não refoge à realidade histórica, quer política, porque é através dela que se opera a explicação das normas contidas na lei natural. A fonte imediata não estanca a fonte mais distante. E, ademais, como nos avisa Bettiol (Giuseppe Bettiol, “Diritto Penale”, Palermo, 1945, pag. 65):

“a natureza dos institutos fundamentais do direito penal, por exemplo, a culpa e a pena, somente no âmbito de uma visão ética da vida adquirem sua significação essencial”.

Inegável a vinculação do direito penal à moral! E os que procuram separá-los apegados ao non omne quod liced honestum est (lê-se: “Nem tudo que é lícito, é honesto”), desviam-se da boa razão. A máxima de Paulo, que autoriza a distinção entre moral e direito, não tolera a separação pretendida!

“Dado que a atividade humana é uma só, segue-se que as regras que a determinam, devem ser coerentes entre si, não contraditórias. Entre a moral e o direito, se há distinção, não há separação ou contraste. Sem dúvida o direito permite muitos atos que a moral proíbe. Mas, isso não implica contradição. Esta existiria se o direito impusesse o que a moral proíbe. Tal contradição no mesmo sistema é, todavia, impossível, nem por necessidade lógica tal acontece ou poderia acontecer”.    
Del Vecchio, em “Lições de Filosofia do Direito”,
 Coimbra, 1951, pag. 257.

Ainda nessa linha, um dos maiores problemas no Direito é entender o significado das palavras, assim como é necessário “conhecer do contextoou frase onde se encontra tal palavra. Só então se explica o sentido exato e os demais significados do vocábulo específico, isto porque sem entender o significado das palavras o estudo do Direito Penal fica comprometido.

Então, “conhecer do contextodemanda considerar a importância de tal.  No livro “Situations Matter” (“Situações fazem diferença”, numa tradução livre porque o livro ainda não foi publicado em português), Sam Sommers (Samuel R.”Sam” Sommers é um psicólogo social americano e professor associado de psicologia na Universidade Tufts), é conhecido por sua pesquisa sobre estereótipos raciais implícitos e racismo cego, apresentando a ideia de que:

”para entender verdadeiramente a natureza humana precisamos apreciar a força do contexto e tudo o que ele pode nos revelar sobre nós mesmos”.

Vejamos um exemplo, dadas as circunstâncias em evidência momentânea, a palavra constranger no crime de estupro:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

Essa palavra tem vários significados, mas somente um significado vale para o caso da configuração dos crimes que têm esse verbo. Assim, constranger, para o Código Penal, é sinônimo de coagir. Coagir tem como sinônimo obrigar ou forçar. Beleza?! Ocorrem os crimes que têm como verbo constranger quando o réu comete atos cujos verbos são obrigar ou forçar outrem a fazer algo.

Assim, não vale para o Direito Penal a palavra constranger quando esta palavra tiver como significado "ser colocado numa situação vergonhosa" ou "passar por um vexame". Ou ainda... Vivenciar circunstância de completo embaraço; vexame que envolva demonstração de timidez; encabulamento!

Isto é: fazer alguém passar vergonha ou fazer alguém passar um vexame não é crime.

Por que isso é importante? Porque não será crime o fato de alguma pessoa dizer que "se sentiu constrangida", isto é: se sentiu envergonhada com o que aconteceu. Por outro lado, será sempre crime quando alguém for constrangida - obrigada - a fazer algo que não quer: no caso sexo ou ato libidinoso.

Exemplo prático: se um cara passa o pênis na perna de uma mulher sem ela ver, ela não foi constrangida. Não é estupro. Se um homem obriga a mulher a sentir o pênis em sua perna e vê, mas não pode dizer não, pois está sob ameaça, há estupro.

No primeiro caso temos um exemplo de constrangimento sinônimo de situação vergonhosa; no segundo caso, constrangimento sinônimo de forçar alguém a algo.

No caso d'aquele que ejaculou no pescoço da moça, correta a decisão do magistrado em imputar ao réu não um crime, mas a contravenção do artigo 61 da Lei de Contravenções. Certo? À luz da capacidade de avaliar as coisas, o fato, com bom senso e clareza; juízo; discernimento “um claro atentado à moral e aos bons costumes”... É preciso mudar a Lei. Reside tipo errado com enquadramento na contravenção equivocada!

Desse modo, não tem que dar lugar à revolta e, assim, praticar injustiça. E com tudo isto não estou dizendo que a atitude do então contraventor não é absurda. É. As mulheres têm que abrir a boca, fazer barulho, se juntar e lutar para que cada dia menos dessas coisas absurdas aconteçam: cada dia menos até que um dia não tenhamos nem menos e nem mais. Mas a luta tem que ter critérios.

Estendo-me a outra consideração, exemplo do que não pode acontecer: Numa entrevista, a Silvia Pimentel, integrante do Comitê CEDAW/ONU (Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher da ONU), disse, em determinado tempo:
"Eu sou pelo Direito Penal mínimo (contra punições excessivas), mas não quando estamos falando de crimes contra a mulher. Sou contra colocar na cadeia gente que furtou comida. Mas não dá para abrandar o sistema penal nos casos em que a vítima é a mulher. E, nesse caso, houve um abrandamento lamentável."

Direito Penal mínimo de conveniência não é direito penal mínimo. Ou é ou não é! Mínimo pra uns casos e máximos para outros é direito penal reacionário.

Albert Einstein, já afirmara:

“Não creio, no sentido filosófico do termo, na liberdade do homem. Todos agem não apenas sob um constrangimento exterior, mas, também de acordo com uma necessidade interior".

Assim, apesar de determinadas condutas não terem mais a necessidade de serem tipificadas como contravenção, fica a lição da importância da existência das contravenções penais para o Direito Penal, pois, em conjunto com o rol de crimes dispostos no Código Penal, vêm ampliar ainda mais o leque de proteção aos valores mais importantes da sociedade, defendidos pelo Direito Penal.

Este, o Direito Penal tem por objetivo principal a repressão de determinadas condutas, denominadas infrações penais, consideradas ofensivas aos bens jurídicos “que o legislador considerou mais relevantes para a sociedade”.

Nesse sentido, em meio às legislações penais dos vários ordenamentos jurídicos dispostos ao redor do mundo ocidental, há na doutrina duas teorias sobre as infrações penais:
  • a tripartida, que divide as infrações penais em crime, delito e contravenção penal; e,
  • a bipartida, que considera sinônimos o crime e o delito, estabelecendo crime (ou delito) e,
  • contravenção penal como as duas espécies de infração penal.

Segundo Prado, o marco inicial da teoria tripartida é o código penal francês de 1791, que classificava as infrações penais da seguinte maneira:
  • os crimes, as infrações que violavam direitos naturais, como por exemplo a vida;
  • os delitos, a exemplo da propriedade, seriam as infrações que lesavam os direitos originários do contrato social e,
  • as contravenções, eram as infrações que infringiam disposições e regulamentos de polícia.

Entretanto, o sistema adotado pelo nosso ordenamento jurídico é o bipartido, dualista, assim como o sistema alemão, como o italiano, o português e outros. Nesse sistema, “o crime e o delito são considerados sinônimos”, que juntamente com a outra espécie, a contravenção penal, formam as infrações penais (grifo) que, conforme assevera Greco:
é como devemos chamar as espécies crime e contravenção penal, quando quisermos nos referir genericamente às mesmas”.
A primeira dica importante para a prova então está ligada as nomenclaturas usadas pelos doutrinadores como abaixo:
Crime = delito
Contravenção = crime anão, crime vagabundo e delito liliputiano

Embora espécies do mesmo gênero, infração penal, os crimes e as contravenções têm diversas diferenças que podem ser objeto de questionamento. Resta aprofundar no conhecimento.

Quanto a pena privativa de liberdade, para os crimes se admite reclusão e detenção, já para as contravenções admite-se apenas a prisão simples (artigo 5º e 6º da Lei de contravenções).

Por imposição do princípio do nullum crimen sine lege, o legislador, quando quer impor ou proibir condutas sob a ameaça de sanção, deve, obrigatoriamente, valer-se de uma lei. Quando a lei em sentido estrito descreve a conduta (comissiva ou omissiva) com o fim de proteger determinados bens cuja tutela mostrou-se insuficiente pelos demais ramos do direito, surge o chamado tipo penal.

Tipo, como a própria denominação nos está a induzir, é o modelo, o padrão de conduta que o Estado, por meio de seu único instrumento, a lei, visa impedir que seja praticada, ou determina que seja levada a efeito por todos nós. A palavra tipo, na lição de Cirilo de Vargas:

"constitui uma tradução livre do vocábulo Tatbestand, empregada no texto do art. 59 do Código Penal alemão de 1871, e provinha da expressão latina corpus delicti. O tipo, portanto, é a descrição precisa do comportamento humano, feita pela lei penal."

Na definição de Zaffaroni, "o tipo penal” é:

“um instrumento legal, logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes".

O Fato Típico é composto pela:
·         conduta do agente, dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva;
·         pelo resultado; bem como,
·         pelo nexo de causalidade entre aquela e este.

Mas isso não basta. É preciso que a conduta também se amolde, subsuma-se a um modelo abstrato previsto na lei, que denominamos tipo.

Tipicidade quer dizer, assim, a subsunção perfeita da conduta praticada pelo agente ao modelo abstrato previsto na lei penal, isto é, a um tipo penal incriminador, ou, conforme preceitua Munhoz Conde:

"é a adequação de um fato cometido à descrição que dele se faz na lei penal. Por imperativo do princípio da legalidade, em sua vertente do nullum crimen sine lege, só os fatos tipificados na lei penal como delitos podem ser considerados como tal".

A adequação da conduta do agente ao modelo abstrato previsto na lei penal (tipo) faz surgir a tipicidade formal ou legal. Essa adequação deve ser perfeita, pois, caso contrário, o fato será considerado formalmente atípico. É o que temos!

Portanto, quando afirmamos que só haverá tipicidade se existir uma adequação perfeita da conduta do agente ao modelo em abstrato previsto na lei penal (tipo), estamos querendo dizer que por mais que seja parecida a conduta levada a efeito pelo agente com aquela descrita no tipo penal, se não houver um encaixe perfeito, não se pode falar em tipicidade.

Assim, a exemplo do art. 155 do Código Penal, aquele que simplesmente subtrai coisa alheia móvel não com o fim de tê-la para si ou para outrem, mas sim com a intenção de usá-la, não comete o crime de furto, uma vez que no tipo penal em tela não existe a previsão dessa conduta, não sendo punível, portanto, o "furto de uso".

Em tempo, algo deve ser feito. Conjuntamente ao fato de que o magistrado deve ter melhor vivência com o direito, como bem dito pelo poeta do direito:

“Juiz não pode se trancar numa torre de marfim”.

Conhecido também por sua veia poética e filosófica, Ayres Britto, após quase uma década no Supremo Tribunal Federal, o ministro aposentado assumiu recentemente a Comissão de Liberdade de Expressão, criada pela Ordem dos Advogados do Brasil. Humanista, defende que “a melhoria do Judiciário passa pela melhor formação da magistratura”.

Isso significa, para ele, que requisitos como reputação ilibada, conhecimento jurídico e até mesmo sensibilidade sejam considerados requisitos de desempenho. Logo:

O juiz tem que abrir, mesmo, as janelas do Direito para o mundo circundante. Ele não pode se trancar numa torre de marfim.


Roberto Costa Ferreira, 06Set2017.







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