Wuhan,
na China, mais populosa e contendo cerca de 11 milhões de habitantes, um
dos principais polos turísticos, a vasta capital da província de Hubei, é um
centro comercial dividido pelos rios Yangtzé e Han. É a capital, a maior
cidade da província chinesa. No momento que o governo notificou a Organização
Mundial da Saúde (OMS) sobre uma misteriosa pneumonia no local, especialistas
de todo o mundo começaram a tentar identificar o agente causador. Supõe-se que
ele tenha se originado num mercado de frutos do mar na cidade. Inicialmente foi
comunicado haver cerca de 40 pessoas infectadas, ao final de dezembro de 2019.
Partindo
de então o Glossário da crise do coronavírus ganha novo termo. Ele
reflete a ideia de que o vírus não atua simplesmente sozinho, mas sim
compactuando com outras doenças. E isso demanda uma abordagem diferente. Desse
modo, um artigo publicado no final do mês de setembro no semanário The
Lancet, uma das mais antigas e prestigiadas publicações científicas do
mundo, remontando ao ano de 1823 sua criação – Reino Unido - e voltada para a
disciplina de medicina, com revisão por pares, sendo publicada semanalmente, pôs
um novo termo no já extenso debate sobre o novo coronavírus. O texto
defende que o mundo não enfrenta simplesmente uma pandemia, mas uma "sindemia".
Tal
artigo é assinado pelo editor-chefe da referida revista, Richard Horton,
que argumenta ser a COVID-19 não “uma peste como outra qualquer já vista
no passado e que, por isso, merece abordagem diferente. O termo sindemia, por
isso, seria mais adequado”. Compreende-se assim que o vírus não atua sozinho,
mas compactuando com outras doenças. Logo, a desigualdade social tem
papel-chave nisso.
"A COVID-19 não é uma pandemia. É uma sindemia.
A natureza sindêmica da ameaça que enfrentamos significa ser necessária uma
abordagem mais diversificada se quisermos proteger a saúde de nossas
comunidades", escreve Horton.
Ainda,
Sindemia caracteriza a interação mutuamente agravante entre
problemas de saúde em populações em seu contexto social e econômico. Este
conceito foi cunhado por Merril Singer a partir de estudo desenvolvido
sobre o entrelaçamento entre a síndrome da imunodeficiência adquirida e a violência
em cidades estadunidenses. Desse modo, tal artigo repercutiu em alguns dos
principais meios de comunicação internacionais e ganhou eco no mundo
científico, revelando-se objeto de estudo mais acurado. A americana
Sociedade de Medicina de Catástrofes e Saúde Pública, por exemplo,
defendeu, em artigo intitulado "Covid-19 à Covid-20", que a
resposta institucional à atual crise seja baseada num "pensamento
sindêmico, e não pandêmico".
Compreende-se
logo que a palavra "sindemia", portanto, entra aos poucos
no glossário do debate sobre a COVID-19,
ao lado de termos como "lockdown", "imunidade
de rebanho" e "achatar a curva", antes
praticamente desconhecidos do grande público, agora e rapidamente de popular
expressão. Mas o que significa exatamente sindemia? O que é? Bem, o termo
"sindemia", com mais detalhes, foi cunhado nos anos
1990 pelo antropólogo médico americano Merrill Singer, mais conhecido por suas
pesquisas sobre abuso de substâncias, HIV/aids e disparidades sociais na saúde
da população, como sinteticamente mencionei no parágrafo anterior e em cujo conteúdo Singer definiu a sindemia como:
"um modelo de saúde que se concentra no complexo
biossocial" – ou seja, nos fatores sociais e ambientais que promovem e
potencializam os efeitos negativos da interação de uma determinada doença.
Em
outras palavras, de acordo com a tese de Singer, a abordagem sindêmica olha
para a doença de forma mais ampla, explorando as consequências gerais de
medidas como lockdowns e o distanciamento social, mesmo em razão
de vivências periféricas na sociedade contemporânea. E é nessa tecla que Richard
Horton bate em seu artigo na Lancet. Ele escreve que, agora vertido:
“à medida que o mundo se aproxima de 1 milhão de mortes por
covid-19, é importante enfrentar o fato de que a atual abordagem é
demasiadamente restrita para administrar a crise do novo coronavírus”.
Segundo
Horton, todas as intervenções se concentraram até agora em cortar linhas de
transmissão viral. A "ciência" que tem guiado os
governos, afirma ele, é baseada principalmente em modelos de combate a
epidemias que enquadram a atual emergência sanitária num conceito de peste
que tem séculos de existência.
"Mas a história da covid-19 não é tão simples
assim", argumenta o editor da Lancet, ao que concordo.
"Duas categorias de doenças estão interagindo dentro de populações
específicas – a síndrome respiratória aguda severa (Sars-Cov-2) e uma série de doenças
não transmissíveis (DNTs). Estas condições estão se agrupando dentro de
grupos sociais de acordo com padrões de desigualdade profundamente enraizados
em nossas sociedades. A agregação dessas doenças em um contexto de
disparidade social e econômica exacerba os efeitos adversos de cada doença
separada."
Então, como combater uma sindemia?
Uma “epidemia
sindêmica” refere-se à ideia de que o vírus não age isoladamente, como o
coronavírus, um vilão solitário que simplesmente espalha pneumonia e falência
de órgãos entre a população. Ele tem cúmplices como:
· a obesidade, diabetes, doenças cardíacas e,
principalmente,
· condições sociais, que acabam agravando a
situação do infectado.
A
questão é que muitos dos "cúmplices" da COVID-19
já são uma epidemia isolada por si só em algumas sociedades. A
obesidade, por exemplo, é um fator de risco para o desenvolvimento de diabetes
e doenças cardíacas.
Um
artigo recente na revista Obesity Reviews – uma revista médica mensal
revisada por pares, criada no ano de 2000, que publica análises de todas as
disciplinas relacionadas ao tema Obesidade, é o jornal oficial da
Federação Mundial da Obesidade e publicado em seu nome por
Wiley-Blackwel – empresa, cuja ação é o negócio internacional de
publicações científicas, técnicas, médicas e acadêmicas da John Wiley &
Sons tendo sido formada pela fusão dos negócios científicos, técnicos e médicos
globais de John Wiley com a Blackwell Publishing, depois que Wiley
assumiu o controle em 2007.
Tem
como editor-chefe David A. York – que se aposentou em 2014 de sua
posição como professor do Departamento de Biologia da Universidade Estadual
de Utah. Antes disso, foi Diretor Executivo Associado de Ciências
Básicas no Pennington Centre em Baton Rouge e membro do corpo docente do
Departamento de Nutrição Humana da Universidade de Southampton, no Reino
Unido, tendo agora um cargo adjunto na Wayne State University em Detroit,
onde mora agora. Anteriormente, tesoureiro da Associação Internacional para
o Estudo da Obesidade e, então, atua como o referido cargo de Editor-Chefe
de Revisões de Obesidade e como Presidente do Comitê de Publicações da
Obesidade Mundial.
Referido
artigo da revista Obesity Reviews, por exemplo, concluiu que pessoas
obesas têm 50% mais chances de morrer de coronavírus. Em seu artigo,
Richard Horton destaca que as sindemias são caracterizadas por interações
biológicas e sociais, interações estas que aumentam a suscetibilidade de uma
pessoa ver seu estado de saúde piorar ao contrair uma doença.
Especificamente, no caso da COVID-19, argumenta o editor da Lancet:
“... atacar doenças não transmissíveis é um pré-requisito
para um combate bem-sucedido à atual crise. O número total de pessoas que vivem
com doenças crônicas está crescendo. Abordar a COVID-19 significa abordar
a hipertensão, obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e respiratórias
crônicas, e câncer", diz.
Horton afirma ainda ser especialmente importante
prestar maior atenção às doenças não transmissíveis em países mais pobres.
Ele cita ainda um artigo na Lancet, também de setembro, em que os
especialistas Gene Bukhman e Ana Mocumbi descreveram algo que chamam
de DNTLs – adicionando lesões à categoria de "doenças não
transmissíveis".
Para
o bilhão de pessoas mais pobres do mundo, as DNTLs - Doenças não Transmissíveis, que são a principal causa de morte e incapacidade em todo o mundo e cujo controle eficaz dessas doenças crônicas depende, em grande parte, dos serviços continuados, responsivos, acessíveis e de qualidade, além de engajamento e autocontrole satisfatório por parte do pacientes. - representam mais de um
terço do seu “fardo” com doenças. O artigo acima
citado por Horton afirma ainda que:
“... a disponibilidade de intervenções acessíveis e
econômicas durante a próxima década poderia evitar quase 5 milhões de mortes
entre as pessoas mais pobres do mundo. E isso sem considerar os riscos
reduzidos de morrer por COVID-19”.
"A menos que os governos elaborem políticas e
programas para reverter as profundas disparidades, nossas sociedades nunca
estarão verdadeiramente seguras da COVID-19", concluindo Horton
ainda que, merecendo destaque:
"A crise econômica que está avançando em nossa
direção não será resolvida por uma droga ou uma vacina.”
Portanto,
tal quadro requer um olhar mais apurado, muito aquém das “conveniências
políticas e respectiva afetação em razão das condições eleitoreiras”, mesmo
porque, ainda temos a considerar que o Brasil está perdendo a liderança no
cenário mundial na adoção de políticas que permitam alimentação saudável,
práticas salutares e procedimentos coerentes, mesmo à vista do que afirma o
professor Boyd Swinburn, especialista em Nutrição Populacional e Saúde
Global da Universidade de Auckland (Nova Zelândia).
Swinburn
é copresidente da comissão responsável pelo relatório que também apontou a
existência de uma "sindemia global", esta última provocada
pela junção das pandemias de obesidade, desnutrição e mudanças
climáticas. Diz ainda, tal autoridade que:
“é urgente um esforço de governos e da sociedade civil para
reverter a tendência de piora nos indicadores”.
Para
ele, progressos começam a ser identificados em alguns países, "mas o
Brasil está seguindo os EUA e retrocedendo", constata. Ainda que, conforme
publicado no início do ano na revista The Lancet, referido
estudo indica que o sistema alimentar atual, além de impulsionar a obesidade,
favorece a desnutrição e as mudanças climáticas.
Comenta
também a autoridade que, aprofundadamente, e com o merecido olhar:
“... devido à importância da Amazônia, esse é um problema
que afeta a todos, não apenas o Brasil. As políticas estão indo em
direção oposta ao que desejaríamos. Infelizmente, acredito que isso seja
reflexo dos interesses das grandes corporações. Temos de dar voz a outros
grupos, ao interesse de pequenos produtores, à sociedade civil, como ocorria no
Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar, colegiado que teve
suas atribuições retiradas pela atual autoridade governamental.”
Quando
referiu, conforme acima que, “progressos estão sendo identificados em várias
partes do mundo, mas, o Brasil está seguindo os EUA e retrocedendo”, isto é
de se lamentar! É preciso que se olhe para si, com muito mais atenção, para
enxergar o próximo! Se temos tempo para pensar em conter o próximo avanço,
observo que temos, à comum consenso com referida autoridade, mas não
muito. As três pandemias que interagem entre si têm trajetórias
distintas.
Mesmo
considerando que as taxas de desnutrição estão caindo, mas lentamente,
a obesidade continua aumentando e a mudança climática, ainda
mal começou a ser revertida, as estimativas mostram que temos 10 anos para
mudar a tendência atual para que não entremos num ciclo vicioso, sem nos
esquecermos do entendimento real do que significa SINDEMIA: a
compreensão de que tal termo combina duas palavras, quais sejam:
· Sinergia e Pandemia, em cujo conceito
envolve e é usado para explicar uma situação em que:
“um vírus não atua sozinho,
mas, se forma a partir da interação de duas ou mais doenças em um contexto
social”, e repito, nocivo à saúde pública!
Roberto Costa Ferreira,
Nov2020
Membro, Relator e Pesquisador nos
Comitês: CEP/USP e UNIFESP/HSP-HU