Depois do Natal, durante a semana
antes de findar este ano de 2016, minha neta perguntou-me, em uma tarde em
minha casa, se eu sabia o que era sonho. Para uma criança, aprendi que 'nunca se
deve considerar tal curiosidade uma bobagem'! E que quando conversamos com a
criança, 'tudo deve ser muito bem pensado', pois que, nossas palavras têm grande
significação e influência sobre ela. Podemos ajuda-la a construir ou destruir
seus sonhos. Então lhe mostrei um quadro pendurado na parede da sala – o
retrato que se vê – e começamos a conversar.
Considerei que no ano que finda
celebramos o quarto centenário da morte de Shakespeare e de Cervantes. Que os
dois escritores faleceram em 1616, quase ao mesmo tempo. Considerei ainda um
texto lido recentemente de Karnal, discorrendo adiante sobre tal, e viajei no
assunto com Isabela e o valioso quadro de José Segrelles – D. Quixote e Sancho.
Minha relação com Shakespeare é
antiga, sólida, transformadora do meu mundo. Mas, nesta oportunidade, o momento
é explicar sobre sonho e “quero falar de um outro amor, o cervantino”.
Como em tantas coisas, entrei no
mundo de La Mancha pelas mãos de Monteiro Lobato. Ele traduziu para a linguagem
infantil o clássico espanhol. Adorei a leitura. Depois, descobri o texto pelas
mãos de dois portugueses, os viscondes de Castilho e Azevedo. Era um texto
erudito, com muitas palavras a descobrir. Enfrentei bem, mas ainda não era a
hora para a paixão. Já era um homem adulto quando descobri novas traduções,
como as de Eugênio Amado e de Sérgio Molina.
Por fim, aproveitando o
lançamento de edições críticas do quarto centenário, li em espanhol, em 2005.
E, ao longo de todos esses anos, sempre fui apaixonado pelas imagens de Gustav
Doré, que eu já estimava na Divina Comédia, na Bíblia e no Paraíso Perdido. Um
capítulo do escritor E. Auerbach, no clássico Mimesis, tratou da obra do
espanhol e aumentou minha ligação com a literatura de Cervantes.
A Dulcineia Encantada analisa a
representação do real na obra. Um privilégio ler alguém muito mais inteligente
do que nós: o olho de Auerbach viu coisas que me escaparam inteiramente. Na
década de 1990, conheci o professor Júlio Garcia Morejón, intelectual devotado
ao mundo da literatura do século de ouro e dono de uma bela biblioteca
cervantina. Dr. Morejón ajudou-me com meu claudicante espanhol e mostrou-me
edições preciosas do Quixote. Dei um salto exponencial no meu conhecimento.
Cito-os, penso sobre eles,
encontro soluções intelectuais e pessoais a partir de suas obras. Agradeço a
generosidade do professor e considerei até, neste contexto, um discurso
preparado por Karnal aproximando Shakespeare e Cervantes. Imaginei, com
liberdade poética, um encontro entre ambos e um diálogo sobre o ato de criar,
embora considere que é uma licença ficcional, eles nunca se encontraram. Sim eu
sabia e por isso repito que se trata de um exercício aproximativo, comparativo.
É uma liberdade literária, não um fato histórico. Enfim, decadente, o nobre D.
Quixote dava asas a minha imaginação e enfrentava gigantes.
Cheio de bondade e de ética
encarnava valores de cavalaria já crepusculares há muito. Era a vitória do
ideal sobre o real. Seu auxiliar, Sancho, era o triunfo do imediato, do
concreto, do aqui e agora. Quixote lia demais, Sancho nunca lia. O cavaleiro
via além de tudo, o escudeiro não conseguia abstrair nada fora do imediato que
seus olhos contemplavam. O fidalgo era magro, aéreo, onírico; Sancho gordo,
terreal, interesseiro. Pais e professores costumam pedir que o real se
manifeste em seus rebentos e alunos.
“Seja concreto, tenha metas precisas, pare de pensar o impossível.”
A idade costuma nos tornar
espessos. Como o escudeiro, desejamos que eles governem uma ilha, ou uma
empresa, ou uma instituição. O sonho alheio vai ficando incômodo à medida que
temos consciência do que nos custou abandonar o nosso. O atarracado auxiliar é
o homem dos ditados de senso comum: “À
noite, todos os gatos são pardos”, repete à exaustão. Sancho aparenta mais
sensatez do que seu amo, mas sua sanidade é baseada na ambição rasteira. O
auxiliar deseja coisas objetivas do mundo, exequíveis e ortodoxas. Quixote lê e
sonha, busca mais e, claro, apanha e é ridicularizado. O fidalgo esquálido é
insano e pode transformar pelo olhar tudo ao seu redor.
Minha neta atenta ao modo pelo
qual eu me expressava para traduzir à dimensão de sua compreensão e
entendimento, ora invadia aquele mundo de sonhos, ora voltava à realidade,
fitando longamente as personagens do quadro. Nosso Cavaleiro da Triste Figura
mostra fulgores racionais em meio aos devaneios. A loucura de Hamlet de
Shakespeare é artificial e política. A alienação quixotesca é poética e
imaginativa. Propor utopias para combater a enfermidade do real. Ver gigantes
em moinhos arruinados. Amar uma Dulcineia belíssima e especial. Combater o mal,
defender os fracos, ler muito, sonhar... Eis parte da fórmula quixotesca.
Assim viajamos e retornamos com 2017
esmurrando nossa porta. Que bela tarde, que interesse manifestado, promotor
deste encanto! Ela saiu, naquele momento intrépida, voltando para o seu filme
preferido que “rolava na TV”. Eu, ora sentado, na esperança do novo ano, de não
morrer afogado na lucidez rasa de Sancho. Quero um pouco da insanidade sábia do
fidalgo. Ser Sancho engorda; ser Quixote transcende. Querem saber no que
resultou a objetividade material e concreta de Sancho Pança?
Tornou-se político no fim da vida.
Feliz 2017!
Roberto Costa Ferreira,
29Dez2016.
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