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quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

D. QUIXOTE e SANCHO – SONHOS


Depois do Natal, durante a semana antes de findar este ano de 2016, minha neta perguntou-me, em uma tarde em minha casa, se eu sabia o que era sonho. Para uma criança, aprendi que 'nunca se deve considerar tal curiosidade uma bobagem'! E que quando conversamos com a criança, 'tudo deve ser muito bem pensado', pois que, nossas palavras têm grande significação e influência sobre ela. Podemos ajuda-la a construir ou destruir seus sonhos. Então lhe mostrei um quadro pendurado na parede da sala – o retrato que se vê – e começamos a conversar.

Considerei que no ano que finda celebramos o quarto centenário da morte de Shakespeare e de Cervantes. Que os dois escritores faleceram em 1616, quase ao mesmo tempo. Considerei ainda um texto lido recentemente de Karnal, discorrendo adiante sobre tal, e viajei no assunto com Isabela e o valioso quadro de José Segrelles – D. Quixote e Sancho.

Minha relação com Shakespeare é antiga, sólida, transformadora do meu mundo. Mas, nesta oportunidade, o momento é explicar sobre sonho e “quero falar de um outro amor, o cervantino”.

Como em tantas coisas, entrei no mundo de La Mancha pelas mãos de Monteiro Lobato. Ele traduziu para a linguagem infantil o clássico espanhol. Adorei a leitura. Depois, descobri o texto pelas mãos de dois portugueses, os viscondes de Castilho e Azevedo. Era um texto erudito, com muitas palavras a descobrir. Enfrentei bem, mas ainda não era a hora para a paixão. Já era um homem adulto quando descobri novas traduções, como as de Eugênio Amado e de Sérgio Molina.

Por fim, aproveitando o lançamento de edições críticas do quarto centenário, li em espanhol, em 2005. E, ao longo de todos esses anos, sempre fui apaixonado pelas imagens de Gustav Doré, que eu já estimava na Divina Comédia, na Bíblia e no Paraíso Perdido. Um capítulo do escritor E. Auerbach, no clássico Mimesis, tratou da obra do espanhol e aumentou minha ligação com a literatura de Cervantes.

A Dulcineia Encantada analisa a representação do real na obra. Um privilégio ler alguém muito mais inteligente do que nós: o olho de Auerbach viu coisas que me escaparam inteiramente. Na década de 1990, conheci o professor Júlio Garcia Morejón, intelectual devotado ao mundo da literatura do século de ouro e dono de uma bela biblioteca cervantina. Dr. Morejón ajudou-me com meu claudicante espanhol e mostrou-me edições preciosas do Quixote. Dei um salto exponencial no meu conhecimento.

Cito-os, penso sobre eles, encontro soluções intelectuais e pessoais a partir de suas obras. Agradeço a generosidade do professor e considerei até, neste contexto, um discurso preparado por Karnal aproximando Shakespeare e Cervantes. Imaginei, com liberdade poética, um encontro entre ambos e um diálogo sobre o ato de criar, embora considere que é uma licença ficcional, eles nunca se encontraram. Sim eu sabia e por isso repito que se trata de um exercício aproximativo, comparativo. É uma liberdade literária, não um fato histórico. Enfim, decadente, o nobre D. Quixote dava asas a minha imaginação e enfrentava gigantes.

Cheio de bondade e de ética encarnava valores de cavalaria já crepusculares há muito. Era a vitória do ideal sobre o real. Seu auxiliar, Sancho, era o triunfo do imediato, do concreto, do aqui e agora. Quixote lia demais, Sancho nunca lia. O cavaleiro via além de tudo, o escudeiro não conseguia abstrair nada fora do imediato que seus olhos contemplavam. O fidalgo era magro, aéreo, onírico; Sancho gordo, terreal, interesseiro. Pais e professores costumam pedir que o real se manifeste em seus rebentos e alunos.

Seja concreto, tenha metas precisas, pare de pensar o impossível.”

A idade costuma nos tornar espessos. Como o escudeiro, desejamos que eles governem uma ilha, ou uma empresa, ou uma instituição. O sonho alheio vai ficando incômodo à medida que temos consciência do que nos custou abandonar o nosso. O atarracado auxiliar é o homem dos ditados de senso comum: “À noite, todos os gatos são pardos”, repete à exaustão. Sancho aparenta mais sensatez do que seu amo, mas sua sanidade é baseada na ambição rasteira. O auxiliar deseja coisas objetivas do mundo, exequíveis e ortodoxas. Quixote lê e sonha, busca mais e, claro, apanha e é ridicularizado. O fidalgo esquálido é insano e pode transformar pelo olhar tudo ao seu redor.

Minha neta atenta ao modo pelo qual eu me expressava para traduzir à dimensão de sua compreensão e entendimento, ora invadia aquele mundo de sonhos, ora voltava à realidade, fitando longamente as personagens do quadro. Nosso Cavaleiro da Triste Figura mostra fulgores racionais em meio aos devaneios. A loucura de Hamlet de Shakespeare é artificial e política. A alienação quixotesca é poética e imaginativa. Propor utopias para combater a enfermidade do real. Ver gigantes em moinhos arruinados. Amar uma Dulcineia belíssima e especial. Combater o mal, defender os fracos, ler muito, sonhar... Eis parte da fórmula quixotesca.

Assim viajamos e retornamos com 2017 esmurrando nossa porta. Que bela tarde, que interesse manifestado, promotor deste encanto! Ela saiu, naquele momento intrépida, voltando para o seu filme preferido que “rolava na TV”. Eu, ora sentado, na esperança do novo ano, de não morrer afogado na lucidez rasa de Sancho. Quero um pouco da insanidade sábia do fidalgo. Ser Sancho engorda; ser Quixote transcende. Querem saber no que resultou a objetividade material e concreta de Sancho Pança? Tornou-se político no fim da vida.

Feliz 2017!


Roberto Costa Ferreira, 29Dez2016.



Comentários
Rubens Rita Jr. Que coisa maravilhosa...antes do Fantasma, Batman e Super Homem, foi o Don de La Mancha, o Cavaleiro da Triste Figura o meu primeiro herói,.. sabe amigo.... ainda muito novo tinha grande apreço por Quixote e me lembro de ter um sentimento dicotômico sobre o seu fiel escudeiro...sentia q este cuidava do nosso herói mas ao mesmo tempo tentava sabotar suas glórias ( impondo a realidade àquele que vivia em sonhos).
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Idalina Treickel Simões Muito bem Sr Roberto! Parabéns! É assim que educamos.
DescurtirResponder113 h
Jose Antonio Silva Neto Parabens pelos ensinamentos. A semente foi plantada.
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Cida Campos Parabéns Roberto Costa Ferreira, você com uma sabedoria sólida, inunda a todos, revivendo as histórias! Lindas netas!
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Cida Campos Feliz Ano Novo pra você e sua família, Que Deus os abençoe a vida toda!
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Sebastiana Rezende Parabéns vovô Roberto Costa Ferreira!! Suas netas vão saber agradece-lo futuramente tenha certeza disso! Feliz Ano Novo para todos vocês!! Abração
DescurtirResponder12 h
Roberto Costa Ferreira Emocionado por tal precioso olhar, afetou-me muita suas especiais considerações. Mesmo porque trazem nelas, intrinsecamente relacionadas, sua vivência materna, divinal e virtuosa, curativa e abrangente, muito aquém da constelação familiar. 
Quem conhec
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Maria Luiza Cesar Cesar Parabéns e sabedoria para com seus netinhos.
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Roberto Costa Ferreira Maria Luiza, querida! Que bom conhecer de suas considerações... Feliz ano, extensivo aos seus. Saudações!
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