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quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Aí cê fala – Mas gente, ó aqui ó ... Alternativamente - Prestenção! Já era! – DRUMMOND está morto?


Aí cê fala – Mas gente, ó aqui ó ... Alternativamente - Prestenção! Já era! Não vai! Quem ousaria servir-se de tais expressões? As variações linguísticas reúnem as variantes da língua que foram criadas pelos homens e são reinventadas a cada dia. Dessas reinvenções surgem as variações que envolvem diversos aspectos históricos, sociais, culturais, geográficos, entre outros, diferenciando-se em quatro grupos: diastráticas, diatópicas, diacrônicas e diafásicas ou estilísticas. No Brasil, temos: regional, social e estilística. Então, vou a Drummond, pois, que, tais expressões “cheiram à mineirice!

De seus diários, Drummond não preservou apenas as páginas que aproveitaria para compor O Observador no Escritório. Separou outro maço de folhas, e o confiou à filha Maria Julieta. Ao nomeá-la sua testamenteira literária, não poderia saber que ela morreria 12 dias antes dele, em 5 de agosto de 1987.

De modo natural, o pequeno tesouro ficou nas mãos de Pedro Augusto Graña Drummond, o caçula dos três netos do poeta – e ele, num tempo aproximado, o embalou em livro, Uma forma de saudadePáginas de diário, publicado pela Companhia das Letras em outubro de 2017.

Belo no conteúdo e na concepção gráfica, com farta iconografia que inclui fac-símiles de páginas de diário, Uma forma de saudade consiste na reunião daquilo que Carlos Drummond de Andrade escreveu por ocasião da perda de pessoas especialmente queridas – o pai, a mãe, os cinco irmãos e uma cunhada - além de dois amigos diletos, Manuel Bandeira e Rodrigo M. F. de Andrade.

Quem leu também O Observador no Escritório poderá reconhecer, na nova fornada de diários, alguma coisa que está também no livro de 1985; uma passagem sobre a mãe, Julieta Augusta, outra sobre Manuel Bandeira. A diferença, nesses trechos, é que no primeiro livro Drummond editou e encurtou os registros que fizera em seus cadernos, e que em Uma forma de saudade vão aparecer de forma bruta, digamos, sem a mesma pretensão literária, carregados ainda das emoções não editadas dos instantes em que foram postos no papel.

Não há, em termos de espaço, a menor preocupação em conferir isonomia ao tratamento dos mortos queridos. Não se pode dizer que Carlos amava menos o irmão mais velho, Flaviano, o Vivi, pelo fato de dedicar a ele uma página apenas, enquanto Altivo está em seis, e José em nada menos de catorze. Não gostava menos de Rodrigo, de cujo fim se ocupa em três páginas, do que de Bandeira, esparramado em dezenove.

Ainda que não houvesse a intenção, os volumes de texto certamente foram determinados pela quantidade e interesse das informações – e, no tratamento delas, sem prejuízo das emoções às vezes avassaladoras, Carlos Drummond de Andrade se mostra um repórter afiado, capaz como poucos de ver e ouvir, o que não espanta da parte de quem foi, intermitentemente, jornalista apaixonado pelo ofício. Ainda quando o coração sangrava, os olhos e os ouvidos não se fechavam ao que houvesse em torno, por macabro que pudesse ser.

Assim, doentes e defuntos muito amados são descritos com rigor naturalista que haverá de chocar alguns leitores. O poeta não deixou de registrar, por exemplo, no velório de Rosa, a irmã mais velha, “o cheiro da decomposição acelerada” que “o perfume derramado mal encobria”. Ou o corpo já vestido do “pobre Manuel”, num necrotério de hospital, “à espera de caixão”, a boca aberta deixando verum chumaço de algodão”.

Já era! Não vai! E foi ... Partiu! Foi no meio do caminho ... Podia ter ficado um bucadim mais!” Será outro gesto de insubordinação mental? Perguntei-me. Tudo é possível, só eu impossível – Há certo gosto em pensar sozinho. É ato individual, como nascer e morrer ... Disse!

Por oportuno, o Atestado de Óbito informa que o escritor, de 84 anos, morrera às 20h45 de uma 2ª feira na Unidade de Terapia Intensiva de determinada Clínica no Bairro de Botafogo/RJ., de insuficiência respiratória, subsequente a um infarto agudo do miocárdio! Sua cardiologista e geriatra que o acompanhava já decorridos três anos, preferiu usar linguagem menos técnica:

Carlos Drummond de Andrade, disse, morreu de Amor!”

Que certeiro diagnóstico! Desde a morte de sua filha poeta – Maria Julieta Drummond de Andrade, 5904/03/1928, 05/08/1987 - mergulhara numa densa, espessa, irremediável tristeza.

Eu esperava que ela fechasse os meus olhos”, queixou-se, ainda no cemitério, sob testemunha do filósofo Antonio Houaiss.

Ambos, pai e filha, tinham uma relação “meio que” freudiana ... Tudo sob testemunho do escritor Octavio Mello Alvarenga, companheiro de Maria Julieta, desde 1983. Disse ainda Alvarenga:

Ambos brigavam muito com dona Dolores”, com quem o poeta se casou em 1925.

E mais:

A filha era a sua grande amizade intelectual” ... Garantiu o genro. E também: “Mas a verdade é que Drummond a massacrou como intelectual e escritora”, pois, “ser filha de um gênio é intolerável!

O inconfidente Alvarenga manifestou mais:

“Foi para escapar ao peso formidável da figura paterna que Maria Julieta se casou, aos 21 anos, com um homem vinte anos mais velho, o escritor e também advogado argentino Manuel Graña Etcheverry, indo morar bem distante ... Em Buenos Aires, onde permaneceu 34 anos!”

Escreviam-se aos sábados, relatando via correios, as peripécias da semana.

“Depois que ela morreu, ele quis rasgar as cartas”, disse Alvarenga. “Eu é que o fiz mudar de ideia”.

Depois do enterro, contou Octavio Mello Alvarenga, o poeta não saiu mais do apto onde vivia, desde 1962, com dona Dolores, na Rua Conselheiro Lafaiete, em Copacabana. Muitos choraram com ele, ao telefone, os amigos mais íntimos. Sua última visita ocorrera na 2ªfeira, dia 10/08, do embaixador Antonio Azeredo da Silveira.

Na 4ª feira - 12/08 - sentiu muitas dores e a família chamou a dona Elizabete. Drummond então, pediu à médica que lhe receitasse não remédios, mas “um infarto fulminante” – que acabou vindo na madrugada de sábado - 15/08 – dia de sua conversa com a filha e mesmo dia onde, por hábito, encontrava-se reunido com seu amigo Plinio Doyle Diretor do Arquivo/Museu de Literatura da Casa de Rui Barbosa e criador do famoso ”Sabadoyle” – uma espécie de Academia de Letras Informal que, desde 1964, reuniam-se, “todo sábado”! 

Morreu 12 dias depois da filha, Maria Julieta, que sofria de câncer. Veio o óbito em 17/08/1987, uma 2ª feira! Deixara, anteriormente, organizado e detalhado, recomendações para seu enterro:

Que se realizasse sem pompa e sem cerimônia religiosa”, pois era agnóstico. Foi atendido!

Ainda assim o enterro do mineiro de Itabira foi capa da “Folha Ilustrada”, dois dias depois, e cerca de 500 pessoas acompanharam a cerimônia fúnebre. Um representante da cidade natal de Drummond anunciou que a cidade de Itabira estava de luto!

Tal representação não restou identificada para o contexto histórico, sendo certo que o bibliófilo José Mindlin comentou, da oportunidade, que Drummond via como umainjustiçaa morte de Maria Julieta.

Dizia que era uma inversão na ordem natural”, contou.

Residia, à época,  nas mãos deste seu amigo – “Plinio Doyle” – dezesseis gavetas de arquivos contendo poemas inéditos, recortes, cartas, os desenhos que fazia. “Drummond era um desenhista bastante razoável, com um talento fino e muito bem-humorado”, atestava Doyle, material mantido a “sete chaves”, termo muito popular da língua portuguesa, originado a partir de um hábito comum entre a realeza de Portugal (século XIII – 1201/1300).

Entre os textos inéditos, certamente, repousaram os originais de um livro de poemas eróticos – O Amor Natural – recusado a diversos editores, pois que, homem reservado, temia ser assimilado à onda de literatura pornô e poemas eróticos vulgares proliferantes. Tal obra reúne 40 poemas que tratam de sexo, desejo e prazer de forma direta e, alguns deles, explicita. Restou publicado em 1992, cinco anos após sua morte, surpreendendo aqueles que conheciam o poeta mineiro por seu lirismo romântico e sua representação por vezes abstrata do amor.

No início da década, certa vez, explicou com muita graça por que não divulgava os famosos versos:

“Antes não havia clima; agora, há excesso de clima”.

De sorte que tivemos um Santo Agostinho, que disse sobre a morte:

A morte não é nada. Eu somente passei para o outro lado do Caminho. Eu sou eu, vocês são vocês. O que eu era para vocês, eu continuarei sendo.”

A morte, em Drummond, não significa a passagem do estado anímico para outro lugar, ou outra dimensão em que o corpo receba as bençãos ou seja possuído pela força da imaginação criativa, como fuga da realidade ...

“A morte é apenas consequência do envelhecimento, a perda da vitalidade, a putrefação da carne”.

Disse também, em Mensagem de Despedida:

“Que pode uma criatura senão, entre outras criaturas,  amar? Amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? Sempre, e até de olhos vidrados, amar?”

Que coisa! Muito mais caberia pensar, dizer sobre o mestre e seu olhar ... Ele que nos deixou, legando-nos uma extensa obra ... Foi exemplar na sua dedicação às letras! Tirante o tempo reservado aos seus deveres tidos de rotina, Drummond se mostrava um repórter afiado, capaz como poucos de ver e ouvir, o que não espanta da parte de quem foi, intermitentemente, jornalista apaixonado pelo ofício. Ainda quando o coração sangrava, os olhos e os ouvidos não se fechavam ao que houvesse em torno, por macabro que pudesse ser. A maior parte do tempo de suas horas eram consumidas no árduo labor literário. Contudo, não nos  enganemos: Assim, doentes e defuntos muito amados são descritos com rigor naturalista que haverá de chocar alguns leitores.

Do mesmo Bandeira, Drummond registrou algo mais ameno, nada mortuário – uma declaração surpreendente de quem, nem sempre com êxito, buscou a vida inteira evitar “casos com mulheres de temperamento difícil”.

Também, numa cama de hospital, o poeta de tanta delicadeza declarou aos amigos Carlos e Rodrigo:

“Acho que esse negócio de trepar deveria ser uma coisa simples; duas pessoas se encontram e, como se desejam, vão dormir juntas, sem necessidade de romance”.

E arrematou:

“Justamente para evitar casos complicados é que tenho deixado de comer muita mulher boa nesse mundo.” Drummond, seu amigo desde os anos 1920, não deixaria de anotar: “É a primeira vez que Manuel me fala de seus amores”.

Desse modo, reitero, não nos enganemos mesmo: a par de Drummond de pungente humanidade, há ainda outro Drummond que nos lembra o “Lasciatemi divertire!” de Pallazeschi, evocado por Mario de Andrade em A Escrava que não era Isaura. Esse Drummond mais definidamente lúdico, que joga com sua competência técnica, revela-se aqui e ali, como em “Oficina Irritada”, “Vênus” ou “Isso é Aquilo”, mas tal ludismo decorre de uma faceta primacial do poeta, o seu culto às palavras, sua firme ciência vocabular.

Como que ele próprio se compenetrou daquele seu conselho de “A Procura da Poesia”, um de seus poemas capitais:

“Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que esperam ser escritos”. 

Impressiona-nos fundamente a capacidade que Drummond tem de convocar palavras para os seus poemas: vai ele da gíria ao erudito, sempre com a mesma segurança. E assim como quase não repete os seus temas, também é dilatado o seu domínio das palavras: espanta-nos como pouco se reitera.  Estou mesmo tentado a dizer que em nossa poesia – e talvez na poesia de nossa língua – Drummond é o poeta que maior número de palavras emprega: cumpriria, para confirmação, que alguém levantasse uma “concordância  drummondiana”; mas no entretempo fica a impressão, quase diríamos, convicção. E por isso ele fez conscientemente, ampliando sem cessar seu universo de temas e vocábulos.

Sua escolha vocabular ostenta claro tacto: assim, quando fala “sou uma loura, trêmula, blândula”, evoca, com essa estrutura, o “animula vagula, blandulade Adriano. Também em “Amar-Amaro” chama-nos a atenção em “almou” em que se confundem a interjeição e o verbo, assim como nos acicata o verso seguinte:

A morte é esconsolável consolatrix consoadíssima” em que há um “esconso” embutido na primeira palavra e na terceira uma evocação, talvez, da “Consoadade Manuel Bandeira. No final “nunca de nuncarasa gíria se eleva a um humorismo seco.  O “apiede” que usa, mostra que esses empregos não são descuidos, mas coonestação deliberada.  Em um outro poema seu, de Natal (“Vi Nascer um Deus”) traz para seus versos, num sopro corrosivo de vida moderna, o mundo da economia e da publicidade, como contraste para o nascimento de um Deus, o mais simples, / o mais pobre”.

Muito mais caberia dizer ... Que Drummond não é para curioso! No contexto em que ele atuou determinado está o real significado da expressão. Ele que fora jornalista, geólogo, ex-professor da USP – Universidade de São Paulo e da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais; ex-presidente da CPFL – Cia Paulista de Força e Luz ... Ainda, “Tinha uma pedra no meio do caminho” e, com esta afirmação, em um poema sem rima, o mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) entrou para o fechado grupo dos modernistas paulistas também!

Roberto Costa Ferreira, 17 /08/2023.

Diretor HILASA   Instituto  de  História

Letras, Artes de Santo Amaro–São Paulo



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